Do empreendedorismo por necessidade ao sonho do negócio próprio, pandemia de Covid-19 transformou as dinâmicas do mundo do trabalho para pequenos empreendedores

Bolinho feito a partir do feijão fradinho triturado e batido, o acarajé faz parte do Patrimônio Nacional da Cultura brasileira, e traz consigo uma história que embarcou  nos navios negreiros que partiram do continente africano para o Brasil, principalmente entre os séculos 15 e 19. Mais do que um importante atrativo turístico da Bahia e fonte de renda para inúmeras Baianas de Acarajé espalhadas por todo o território nacional, esse alimento é uma herança negra, transmitida ancestralmente. 

“É muito importante salvaguardar e preservar esse ofício de Baianas de Acarajé que já existe há mais de 300 anos. Precisamos não só formar as baianas, mas sim empreendedoras donas do seu próprio negócio”, argumenta Rita Santos, presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM). Hoje, no segundo ano de pandemia de Covid-19, as Baianas tentam retomar os negócios, mas ainda com muitos desafios. 

Rita conta que o impacto foi muito grande: “Não estávamos preparadas para ficar sem trabalhar desde março de 2020, e o retorno está sendo muito mais difícil do que esperávamos”. Outra dificuldade encontrada nesse período pela categoria foi o comércio digital. “Tentamos entrar nas plataformas virtuais, mas não tivemos êxito, pelo menos não em Salvador, pois as nossas baianas não estavam preparadas e com estruturas nas suas casas. A maioria não sabe lidar com a internet”. A empreendedora aponta ainda que algumas plataformas de comércio online “não foram parceiras, pois com juros de 27% não é possível para ninguém”.

As intempéries não foram poucas e, nesse período, a presidente Rita viu a associação chegar à marca de 7 mil Baianas de Acarajé. “Por incrível que pareça aumentou muito o número em um ano e pouco”, conta. A trabalhadora destaca que as novas integrantes da associação vieram principalmente de municípios do interior baiano, o que leva a crer que, nesse tempo pandêmico, mesmo com a categoria enfrentando dificuldades, muitas mulheres enxergaram na cultura do tabuleiro e no icônico acarajé a chance de sobrevivência.    

Crise
O caso da Rita ilustra bem o que os números apontam:no Brasil, houve uma significativa queda nos empreendimentos estabelecidos – negócios com mais do que 3 anos e meio de existência –, passando de 16,2% em 2019 para 8,2% no ano de 2020. Do outro lado da balança, ocorreu um aumento acentuado entre as pessoas que iniciaram um negócio, muito em razão da necessidade. O índice passou de 8,1% para 10,2% no ano passado. Outro dado que chama a atenção é quando se faz um recorte de gênero: entre as empreendedoras já estabelecidas a queda foi de 62% em relação ao ano de 2019, entre os homens esse número ficou em 35%. Normalmente as mulheres enfrentam desafios diferentes na hora de empreender e com a pandemia isso parece ter ficado mais evidente.

A análise faz parte do relatório anual “Empreendedorismo no Brasil 2020” do Global Entrepreneurship Monitor (GEM), que contou com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBPQ). O GEM, que realiza esse tipo de estudo desde o ano 2000 no Brasil e em outros países, observou que uma importante parcela do empreendedorismo nascente no País foi motivada pela falta de opção de trabalho e de renda.

“Pela primeira vez desde 2002 a maioria dos empreendedores de negócios em estágio inicial o fazem por essa motivação [a necessidade]. Naturalmente há uma vinculação forte com a escassez de postos de trabalhos, o que se alinha ao dado anterior da redução dos negócios já estabelecidos”, explica Paulo Alberto Bastos Jr, analista sênior e membro da equipe de coordenação da pesquisa GEM Brasil pelo IBQP.

Experiência
Ao destrinchar os dados sobre quem são os donos de negócios que nasceram em 2020, percebe-se que a taxa de empreendedores seniores (entre 45 e 64 anos) mais do que dobrou em relação ao ano anterior. Paulo Alberto diz que isso mostra, assim como a questão do empreendedorismo por necessidade, que a falta de alternativas para geração ou complementação de renda empurrou as pessoas, jovens e os mais experientes, para o empreendedorismo. 

“Não na mesma intensidade, mas houve também um crescimento expressivo entre os mais jovens. O que há de positivo, pode-se dizer, é que o fenômeno empreendedor definitivamente passa a ser encarado como uma saída para o desenvolvimento econômico. Isso pode levar à criação de políticas públicas mais ‘encaixadas’ com a realidade desse perfil de empreendedores, que possuem baixa escolaridade e baixo nível de renda familiar”, pontua o analista do GEM.  

Formação
O grau de escolaridade da população brasileira que empreende é umas das características sociodemográficas analisadas pelo relatório do GEM, que aponta para um elevado crescimento de pessoas que iniciaram um negócio e não têm nenhuma educação formal ou apenas o ensino fundamental incompleto. Nesta categoria analisada, a elevação foi de 104% em 2020 ao comparar com ano anterior. Em contraponto, no ano passado, registou-se uma diminuição de 32% em empreendedores com nível superior ou mais.

A educação e a capacitação estão entre as principais recomendações listadas por especialistas ouvidos pela GEM para desenvolver o seu próprio empreendimento. Rita Santos não apenas concorda com isso, como percorreu 1.150 km entre Salvador e Teresina, capital do Piauí, para lançar, no dia 09 de agosto, o projeto “Curso de saberes do ofício da Baiana de Acarajé”, o qual conta com 230 pessoas inscritas de sete municípios. Realizado no Memorial Esperança Garcia, o curso de 15 dias tem como objetivo resgatar e valorizar a cultura dos povos de matriz africana do estado, e, a partir da formação, contribuir com a geração de empregos e renda. 

A organização do curso identificou que muitas das mulheres inscritas estavam na informalidade e atuavam, antes da pandemia, como trabalhadoras domésticas diaristas ou vendedoras autônomas, mas com o surto do novo coronavírus ficaram desempregadas. “A presença das mulheres negras, focadas em preservar a história, saberes e fazeres das nossas ancestrais, sustenta a cultura afro-brasileira por meio da sua gastronomia e do seu ofício”, contextualiza a associação de baianas.

Paulo Alberto Bastos Jr. enfatiza que é fundamental que haja programas que, de fato, direcionem adequadamente essa energia empreendedora que flui nas brasileiras e nos brasileiros, como a que move Rita por tantos quilômetros para ensinar o seu ofício.

“O sonho de empreender faz parte de forma muito intensa dos projetos de futuro da população brasileira. Eles superam o sonho de fazer carreira em empresas, como empregados, e também em relação à inserção no serviço público”, aponta Paulo conforme o próprio relatório da GEM mostra.

Recomendações para empreender
Especialistas ouvidos pela GEM apontam áreas sensíveis a intervenções para melhorar as condições de empreender no Brasil, nação que chegou a ter, em certos momentos, a maior taxa de empreendedorismo do mundo. 20 fatores foram listados por estudiosos da área, sendo os mais mencionados: políticas governamentais, educação e capacitação, apoio financeiro e pesquisa e desenvolvimento. Confira algumas recomendações referentes aos fatores: 

  • Simplificação de todas as burocracias necessárias para abertura, operação e fechamento de empresas no Brasil, o que inclui, mas não se limita a, processos de abertura e concessão de permissões de operação;
  • Legislação, iniciativas e ações governamentais que deem espaço  continuamente  para a pequena empresa no país e reconheçam a sua importância para o mercado interno;
  • Necessidade de adoção de políticas públicas que apoiem as mulheres no empreendedorismo. Exemplo: ao lidar com a maternidade e o negócio, políticas relacionadas à disponibilidade de creches são fundamentais;
  • Recomenda-se com urgência o desenvolvimento de políticas de formação básica e integral dos indivíduos, de orientação dos mercados de acordo com o capital social, de orientação na formação profissional de acordo com a demanda e aptidão dos potenciais empreendedores; 
  • Maior democratização do acesso ao crédito, serviços bancários, principalmente para os nano empreendedores, informais.

Leia mais
O relatório do GEM é tido por especialistas como o principal resultado de pesquisas sobre o empreendedorismo em âmbito global, especialmente em um momento de pandemia com tantas adversidades que têm impactado o setor. A análise na íntegra pode ser encontrada no portal do Sebrae e do IBQP. Em nosso portal também é possível encontrar uma série de conteúdos especiais sobre empreender em tempos de pandemia, como vídeo aulas, relatórios e análises.