Consultora enfatiza que todos precisam sair do “banco de reservas” e entrar na luta antirracista. Organizações sociais, que por essência sonham com um mundo melhor, têm criado comitês para lidar com casos de racismo em suas estruturas.

Quem pesquisar por racismo em qualquer dicionário, encontrará basicamente esta denifição: “preconceito, discriminação ou antagonismo por parte de um indivíduo, comunidade ou instituição contra uma pessoa ou pessoas pelo fato de pertencer a um determinado grupo racial ou étnico, tipicamente marginalizado ou uma minoria.” O racismo não só existe, como está enraizado na sociedade brasileira, um país com centenas de anos de história escravocrata. Reflexos desse período continuam a ressoar por meio do racismo, crime reconhecido por lei há 32 anos.

A população brasileira é, em sua maioria, preta e parda – cerca de 54%, de acordo com o último Censo (2010) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).  As mulheres também são maioria, totalizando cerca de 51,5% do povo brasileiro. No recorte do microempreendedorismo não é diferente. Esses trabalhadores têm cor e gênero: mulheres pretas, em sua maioria. Contudo, ainda não se vê esse espelhamento nas próprias organizações do ecossistema social, formadas majoritariamente por pessoas brancas. 

Mesmo em um país de maioria negra e sendo o racismo uma contravenção penal, os atos de racismo são cotidianos e vão desde ‘piadas’ até homicídios. Por isso, para a Aliança Empreendedora, ser antirracista é uma responsabilidade obrigatória. A instituição, atuante desde 2005 com empreendedores do interior dos estados e de comunidades periféricas, reconhece a urgência, em manifesto de compromisso com a diversidade, de  promover  o  acesso  e  a  garantia  de  direitos,  liberdades  e  oportunidades  justas para  todas  e  todos,  conforme  indicado  na  Constituição  Federal  do  Brasil  e na  Declaração Universal  dos  Direitos  Humanos

Outra iniciativa da Aliança foi a criação, em 2020, de um Comitê  da  Diversidade, com o objetivo de apresentar  soluções  ao  longo  do  tempo –  tanto internas,  considerando  que  as  desigualdades  são  estruturais,  quanto  externas, na  execução  dos  projetos  e  atividades desenvolvidas com  microempreendedores, empresas,  governos,  organizações  sociais  e  interessados  na  causa. A iniciativa surgiu após consultoria de Luis Vinicius Belizario, proprietário e consultor da Harpia – Orientação e Diversidade.

Para a psicóloga e consultora em Diversidade, Equidade e Inclusão (DE&I), Mafoane Odara, as organizações da sociedade civil têm um papel fundamental na redução das desigualdades e isso passa por lidar responsavelmente com o debate racial.

“O racismo está presente nas estruturas das organizações, sejam elas públicas, privadas ou sociais. A  única forma de uma instituição combatê-lo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas e intencionais”, aponta.

A especialista elenca algumas iniciativas que podem ser adotadas no dia a dia das organizações:  

  1. Incluir em sua estratégia de atuação a promoção da equidade, inclusão e representatividade em suas relações internas e com o público externo; 
  2. Remover obstáculos para a ascensão de pessoas de grupos minorizados economicamente e socialmente, especialmente a posições de direção e de prestígio na instituição;  
  3. Manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais;
  4. Promover o acolhimento de conflitos raciais e de gênero.

Atuante na área social há 20 anos, Luis Vinicius analisa que a discussão racial pública é crucial, pois perpassa o âmbito da empregabilidade, o sistema judiciário – a forma de condenar ou não as pessoas -, o acesso ao sistema de ensino, etc.

“Se não olharmos para a questão racial, não resolveremos qualquer outra desigualdade porque é uma pauta transversal. Por isso, é importante avançar nessa agenda, e não só o terceiro setor, mas o segundo e o primeiro também.” 

Guia prático

O Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS) e o Instituto ACP também têm se debruçado sobre o tema da desigualdade e inclusão por meio do Guia de gestão de pessoas no Terceiro Setor por entender que, apesar de não ser algo novo, é crescente o entendimento de que é preciso agir para mudar a realidade e que há pouco conhecimento acerca dos caminhos que podem ser trilhados.

No  evento Como aumentar a diversidade racial na sua organização, realizado em janeiro deste ano, foi apresentado um passo a passo básico para que as organizações possam implementar um programa de diversidade e inclusão: 

  1. Diagnóstico: levantamento de dados quantitativos e qualitativos da diversidade no quadro interno de pessoas;
  2. Plano de ação: priorização dos temas (raça, gênero, idade, LGBTQI+, pessoas com deficiência, etc.), definição de objetivos factíveis e inclusão no plano estratégico da organização;
  3. Conscientização: incorporação de ações de capacitação e fomento à cultura de diversidade às práticas institucionais;
  4. Políticas e Processos: revisão das práticas atuais e criação de mecanismos como um comitê de diversidade, políticas afirmativas, código de conduta e canal de denúncia anônimo;
  5. Monitoramento: acompanhamento periódico das ações implementadas e definição de parâmetros para avaliação dos resultados.

Mafoane acredita que o Brasil, com toda sua diversidade, pode protagonizar uma agenda sustentável e de transformação econômica, social, ambiental e política. E para isso, é fundamental a concepção de novos modelos de desenvolvimento que possibilitem conciliar justiça social e desenvolvimento econômico, priorizando o investimento das organizações governamentais, privadas e sociais em ações afirmativas que contribuam para redução das desigualdades.

“Entre os principais desafios nesse desenvolvimento está mudar o olhar para tornar o apoio mais inclusivo para o acesso a recursos financeiros e um apoio estruturado para o crescimento do empreendimento”, observa.

Trabalho

A desigualdade é um fator que influencia a vida de todos os brasileiros. Mas, ser branco ou negro pode interferir também no empreendedorismo? No Brasil, mesmo a população negra sendo maioria, ela possui menos acesso a direitos. Em 2013, segundo dados do Sebrae e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), 50% dos donos de negócios no país eram negros. Porém, o rendimento mensal dos empreendedores negros era 45% menor do que os donos brancos no mesmo ano. 

No mercado de trabalho, esses dados não destoam. Segundo o Estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil 2019 do IBGE, embora sejam a maior parte da força de trabalho no Brasil (54,9%), os negros são maioria entre as pessoas desocupadas e subocupadas. Eles correspondem a cerca de dois terços do grupo que não tem emprego (64,2%) e do contingente que trabalha menos horas do que gostaria ou poderia (66,1%).

A partir desses dados, Viny Belizario entende que o país, comparado a outras nações, está engatinhando em muitos aspectos, como o combate às desigualdades sociais.

“Não podemos esquecer que nesses últimos três anos nós tivemos muitos retrocessos em relação ao que se conquistou nos últimos trinta anos, desde a Constituição.”

De acordo com o consultor, a luta contra a desigualdade deve ser permanente, tanto no terceiro setor, como em outros segmentos do país. 

Mafoane é enfática ao propor ações que devem permear o cotidiano de todos que buscam combater as situações de racismo e a desigualdade. Individualmente, ela ressalta que é necessário estudar o tema e começar a perceber e desnaturalizar os lugares sociais de poder apresentados. “A desigualdade não pode ser naturalizada”, destaca.

Como sociedade, ela afirma que é importante:

– Ser proativo/a no desenvolvimento e escuta de pessoas negras, especialmente de mulheres negras;

– Ampliar os espaços de fala para as pessoas negras;

– Buscar construir, intencionalmente, e reconhecer equipes com mais representatividade;

– Criar estratégias múltiplas e programas para lidar com os vieses inconscientes (problemas complexos exigem soluções complexas);

– Empreender novas formas de reconhecimento de atitudes, comportamentos;

– Sair do “banco de reservas” e entrar em campo na luta antirracista.