Referência no empreendedorismo feminino negro, Daise Rosas fala sobre a importância da valorização da cultura afro-brasileira no empreendedorismo para a economia do país, mas também para a autoestima e pertencimento da mulher negra

 

Na década de 1980, a psicóloga carioca Daise Rosas atuava na linha de frente do movimento Meninos e Meninas de Rua, que ficou conhecido nacionalmente pela Chacina da Candelária, quando oito jovens, entre 11 e 19 anos, em situação de rua e que passavam os dias e as noites no entorno da Igreja da Candelária, ora pedindo dinheiro ou comida ora praticando furtos para sobreviver, foram mortos não de fome e nem de frio, mas a tiros por policiais e ex-policiais. “Eu cheguei ali e vi que quem estava na rua eram as crianças negras, e não as crianças não negras. Alguns dos meus atendidos foram mortos”, conta.  

Daise é uma mulher negra retinta, cujo pai, segundo ela, é um empreendedor de sucesso. “Meu pai montou uma oficina com pouquíssimo estudo e fez essa oficina prosperar todo o tempo.” Daise decidiu lá na década de 1980 dar àquelas crianças o que ela viu dar certo em sua experiência pessoal. “Entendi que mais que trabalhar com a juventude negra pobre, eu precisava trabalhar com as mães desses meninos e meninas. Se elas têm suporte, têm esteio, não vão parar na rua.” Foi dessa forma, encarando o empreendedorismo como uma ferramenta para a promover justiça social, que Daise se tornou uma das mais importantes agentes (e voz) do empreendedorismo para mulheres negras.  

Hoje é membro do Fórum Nacional de Microempreendedores e do Comitê Gestor de Empreendedorismo Feminino, no governo federal. É também conselheira municipal e conselheira estadual dos conselhos de empreendedorismo, é presidenta da Rede Brasil Afro Empreendedor (Afro) da cidade do Rio de Janeiro, e é dirigente na Reafro fluminense.  

Daise administra quatro empresas onde é dona ou sócia, uma delas no Acre, atende como psicóloga e está na fase final da tese de doutorado. Ela pesquisa o impacto do empreendedorismo na autoestima e no pertencimento cultural de mulheres negras.  Nesta entrevista ela fala sobre os desafios e sobre a potência da empreendedora preta. Confira:  

Daise Rosas, referência no empreendedorismo feminino e negro

 

 

Aliança Empreendedora: Como foi que você delimitou que seu trabalho seria o de fomento ao empreendedorismo da população negra?  

Daise Rosas:  Depois que eu trabalhei com as meninas de rua, eu fui trabalhar com os jovens das comunidades. Quando eu olhei para esses jovens que precisam entrar no mercado de trabalho e têm dificuldades, o que eu vi foi que a imensa maioria eram de negros. Por outro lado, no período da noite eu trabalhava como docente na Universidade Cândido Mendes, e todos os meus alunos na sala de aula eram brancos. Na época, a renda média desses alunos era de R$ 9 mil. Eu me dei conta que nenhum deles trabalhava, apesar de serem jovens em idade produtiva. E de manhã, no projeto nas comunidades, tinha criança de 14 anos batendo na minha porta querendo trabalhar. À noite os alunos falavam que eram muito jovens para trabalhar. Era uma enorme contradição. Eu lidava com o público mais rico e mais pobre da sociedade carioca. Na época, eu era a única docente negra na escola. Os outros professores tinham todos nomes de rua. E eles me perguntavam meu sobrenome e eu dizia: meu nome é aquele das pessoas que trabalhavam no porão da casa da família de vocês.  

 

Aliança Empreendedora: Quais são os principais desafios para a mulher negra que empreende ou quer empreender?  

Daise Rosas: Um dos primeiros desafios é a permanência dela no negócio. Não é trivial uma mulher negra se manter firme no propósito dela diante das muitas barreiras que esse sistema patriarcal coloca. Ou seja, ela chega em casa do trabalho, no que seria o contraturno, e tem que desempenhar uma infinidade de outras tarefas que não estão no contexto do negócio, mas no contexto da casa, é uma desafio enorme. Mas temos também o desafio de acesso ao crédito, a baixa escolaridade, que é consequência da falta de oportunidades.  

 

Aliança Empreendedora: Essa falta de oportunidades é consequência da falta de políticas públicas para o setor?  

Daise Rosas: Só começamos a implementar esse ano, com o Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, uma lei de empreendedorismo feminino. Eu posso dizer que ajudei a lançar esse movimento porque escrevi o primeiro artigo sobre empreendedorismo feminino no Brasil, isso em 2007 (acesse aqui). Logo depois eu fui alçada à gestão de empreendedorismo feminino na gestão da Nicéia Freire (secretária de Políticas para Mulheres no governo Lula 1). De lá para cá, alguns estados conseguiram realizar algumas ações importantes. O Pará é o estado, ao meu ver, que mais avançou, e agora, mais recentemente, o Rio de Janeiro tá na ponta de lança porque criou um Conselho Estadual de Empreendedorismo Feminino, que é um espaço de diálogo super importante para acelerar o empreendedorismo.  

 

Aliança Empreendedora: Que modelo de política pública, na sua opinião, precisa ser implementado?  

Daise Rosas: É preciso pensar no microempreendedor familiar. O que nós temos hoje, como classificação, é o microempreendedor individual. Mas no Brasil, as mulheres, em especial as mulheres negras, trabalham com a família, e apenas um membro da família é dado como o microempreendedor individual. Ao invés de ter um plano que foca no indivíduo, precisamos de um que foca na família. Além disso, precisamos revisar a tributação do microempreendedor. Os impostos não são equânimes. Quem ganha pouco está pagando a mesma coisa que quem ganha muito. Ainda sobre tributação, defendo que haja uma reparação a toda a desigualdade de oportunidades vivida pela população negra através dos impostos. Isso é um modelo viável e importante.  

 

Aliança Empreendedora: Falamos até aqui dos desafios. Quais são as potências da mulher negra empreendedora?  

Daise Rosas: Nós, mulheres negras empreendedoras, estamos nos fortalecendo a partir dos nossos saberes ancestrais e da valorização da nossa cultura. Nós estamos vendendo para o Brasil a  potencialidade daquilo que somos verdadeiramente. A partir do momento que fomos (africanos e afrodescendentes) trazidos para o Brasil, ficamos, nos reproduzimos e solidificamos para o Brasil uma outra estética cultural. A gente vê pela alimentação, como o Bobó de Camarão, o Acarajé, ou atividades culturais, como o carnaval, que movimenta bilhões todos anos. Ao mesmo tempo, vivemos uma dicotomia, porque a nossa cultura, os nossos saberes ancestrais, são justamente aquilo que revitaliza as forças econômicas, mas que são também constantemente desvalorizados. A não ser que essas expressões culturais sejam realizadas pela população não negra. Nesse caso elas criam relevância. Vou dar o exemplo da carrocinha de cachorro-quente. Isso é coisa de gente pobre. Mas quando ela é feita por um não negro, ela evolui, vira Food Truck, recebe crédito, vira uma marca em tons retrô, e então ganha valor para o público. O que temos de maior valor para vender é a nossa identidade, mas isso precisa ganhar relevância para o poder público e ser reconhecido pela sociedade.  

 

Aliança Empreendedora: No seu olhar como psicóloga e pesquisadora, o que tem aparecido nos momentos de escuta com as empreendedoras que te chama atenção?  

Daise Rosas: O que eu tenho ouvido com maior frequência são as dificuldades da mulher continuar no seu negócio frente a estrutura social racista e machista. Teve um depoimento recente que me chocou muito de uma participante que é dentista. Os clientes ou pacientes chegavam ao consultório dela e perguntavam para ela se a dentista já tinha chegado, ou quem que iria atender. As pessoas marcaram a consulta porque receberam indicação dela como profissional, por ela ser uma excelente dentista. Ela é uma mulher preta, retinta como eu, e não conseguiu continuar o negócio diante do racismo que sofria diariamente. Isso a incomodou a tal ponto que ela teve uma crise psíquica, de pânico, e com isso preferiu largar o ofício para o qual ela estudou a vida toda, e passou a trabalhar na confecção de bolsas, calçados, e ela trabalha muito bem com isso. Esse é o tipo de exemplo que eu vejo que despotencializa essas mulheres, o trabalho dessas mulheres, o saber delas, e não só nas negras, mas nas indígenas também. Estamos vendo casos de mulheres indígenas que deixaram de fazer o tingimento natural, uma prática ancestral, para trabalhar na indústria química porque os seus saberes foram rebaixados. Essas mulheres estão participando de oficinas para reaprender a técnica, porque ela foi perdida. A crise climática está provando para todos algo que estamos falando há bastante tempo: o futuro é ancestral. A mulher negra, assim como a indígena, é muito ligada à natureza, às ervas, às práticas sustentáveis. Essa ideia é matéria prima de uma permanência equilibrada no mundo. Mas esses saberes precisam ter valor, serem reconhecidos, respeitados, estimulados. Essa desvalorização criou uma baixa estima, e como consequência o distanciamento do pertencimento daquilo que você tem para si e para as coisas que você valoriza, como a natureza.  

 

Aliança Empreendedora: No Fórum Brasileiro de Microempreendedorismo, organizado pela Aliança Empreendedora, você debateu sobre o Rotas Negras, novo programa do Ministério da Igualdade Racial em que você colabora. Qual a ideia central do programa?  

Daise Rosas: O Rotas Negras é um programa do Ministério da Igualdade Racial que está sendo pedido pelo movimento negro há muitos anos. A proposta é fortalecer a população negra dentro da própria população brasileira. O Rotas Negras vem para consagrar a população negra em diferentes espaços sociais e na nossa construção social. Na linguagem, por exemplo, a língua portuguesa foi abrasileirada a partir das línguas bantu e iorubá, que são língua africanas. Isso poucas pessoas sabem. Há também a questão do território. Os negros circularam em peso por diversos locais, como o Cais do Valongo, a Rota da Liberdade, que passa por estados como a Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso, São Paulo, e que não são valorizados culturalmente. Há um apagamento mesmo. O Rotas chega para jogar luz nesses lugares que as pessoas negras caminharam e ainda caminham, e estimular o afroempreendedorismo por meio do turismo, valorizando a cultura negra.